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No ponto onde as águas se separam

O crítico francês Roland Barthes
(Foto: Divulgação)
Muito embora a aritmética o informe de que já ultrapassou em muito a metade de sua vida, sente-se no meio, bem na metade de uma existência que se dilacera em um antes e um depois. Nas anotações de Roland Barthes dos cursos para o Collège de France, ele encontra o seguinte trecho e anota: “experimento hoje essa sensação-certeza de viver o meio do caminho, de me encontrar nessa espécie de ponto onde as águas se separam, seguindo duas costas divergentes.” (Barthes, R. “Da vida à obra”, In: A preparação do romance, Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pág. 5. Trad. de Leyla Perrone-Moisés).
Entre o antes e o depois está o trabalho inacabado, o estudo que não escreveu, embora rabisque-o todos os dias em sua mente. “Vontade de esvaziar o escaninho dos compromissos, dos artigos, dos pareceres, dos textos obrigatórios”, diz. Deixar que no escaninho só entre aquilo que estiver relacionado a este livro, a esta tese que anota, sublinha, projeta, rabisca e abandona.
É outra vez Roland Barthes quem lhe aponta o caminho: “vem um momento em que o que se fez, escreveu (trabalhos e práticas passadas), aparece como um material repetido, fadado à repetição, ao cansaço da repetição.” (Barthes, id. ibid., p.6). Eis o que o destino (previsível) reserva aos que escolhem a vida de escrevente: “sempre e até a minha morte vou escrever artigos, dar aulas, fazer conferências – ou no máximo, livros – sobre assuntos que apenas variarão (tão pouco!)? (Barthes, id. ibid., p.6).
Neste ponto em que as águas se separam, o escrevente faz um esforço para se manter à tona. Para não naufragar, sonha que esta outra parte de sua vida, a que virá, será capaz de compensar tudo o que ficou na outra margem. “Pois o rio só tem mesmo duas margens”, repete para si mesmo.

M.S.V.

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