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Meu livro do ano

Trecho da Ringstrasse, em Viena. Ao fundo,
o prédio da Universidade (Foto: M.S.V.) 
Todo final de ano a mídia elabora suas listas de melhores e piores. Minha lista se resume a dois ou três livros, lidos em 2013 mas não necessariamente publicados nesse ano. Foram livros que me acompanharam ao longo de todo o ano que agora termina, lidos, relidos, sublinhados, anotados. O primeiro deles é A lebre com olhos de âmbar, de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca, trad. de Alexandre Barbosa de Souza).
Já comentei aqui sobre essa obra, que toma como fio narrativo a história de uma coleção de miniaturas japonesas feitas de madeira ou marfim, os netsuquês, muito usados em quimonos, para contar a história de uma família de banqueiros judeus que viveram em Viena nas primeiras décadas do século 20.
Da micro-história dessa  família, o leitor  é conduzido à macro-história da primeira metade do século 20. Detenho-me num trecho que considero especial em função da tese que escrevo atualmente, em que o autor reconstitui os trágicos acontecimentos ocorridos em Viena, entre os anos de 1938 a 1947. Marcantes são as páginas em que Edmund de Waal descreve a sucessão de fatos do dia 12 de março de 1938, quando a Áustria deixa de ser um país independente para ser anexada pela Alemanha de Hitler, tornando-se nacional-socialista.
Do seu palácio situado na Ringstrasse, os Ephrussis assistem a tragédia que se abate sobre Viena, a sua Viena. Judeus integrados à sociedade vienense, eles são surpreendidos com a movimentação das ruas: tão logo o chanceler Kurt von Schuschnigg termina o discurso em que se despede do povo austríaco, cedendo ao ultimado feito pelo Reich alemão, na noite de 11 de março, escutam-se as vozes enfurecidas, que gritam: “ein Volk, ein Reich, ein Führer”. Escreve Edmund de Waal, à pág. 20:
“É uma invasão de camisas marrons. Há businas de táxis e homens armados nas ruas, e por algum motivo a polícia veste braçadeiras com a suástica.  Caminhões avançam pela Ringstrasse, passam pelo Palais, pela Universidade, em direção à Prefeitura. E os caminhões levam suásticas, e os bondes têm suásticas, e há rapazes e meninos pendurados, berrando e acenando.”
Deste momento em diante, a agitação toma conta das ruas, culminando com a destruição das vitrines das lojas de judeus, da invasão de suas propriedades, do processo de arianização que se seguirá. Enfim, quem pode escapar, não pensa duas vezes. Mas para muitos será tarde demais, pois o pior ainda está por vir. É o início da barbárie.
M.S.V.

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