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O lirismo comedido na poesia de Telma Scherer

Telma Scherer: poesia e performance


Ela é autora de dois livros de poemas -- Desconjunto (IEL, 2002) e Rumor da Casa (7 Letras, 2008), e acredita que poesia e performance caminham juntas.

Ao colocar em prática esse preceito, Telma Scherer, jovem poetiza de Porto Alegre, acabou sendo impedida pela polícia de continuar a performance que fazia na tradicional Feira do Livro da capital gaúcha, em novembro do ano passado. Somente agora soube do ocorrido, ao ler entrevista da autora no blog mundo livro, no site de Zero Hora.
Na ocasião, Telma sentou no meio de uma calçada da Praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre, e, entre as barracas de livros e os famosos jacarandás que costumam florescer naquela época do ano, amarrou-se a uma casinha de cachorro enquanto distribuía suas contas pessoais às pessoas que passavam pela Feira.

Intitulada “Não alimente o escritor”, a performance foi a maneira que Telma encontrou para protestar contra as dificuldades vividas por todos aqueles que se jogam na criação literária mas não se submetem às leis do mercado.  Não é um caminho fácil, principalmente para quem escreve poesia.

“Meu objetivo era o de proporcionar aos espectadores a visão de uma cena forte e inquietante, que convidasse-os à reflexão. A intenção da escolha dos elementos foi a de trazer à tona aspectos do processo criativo dos escritores que ficam geralmente à margem, desvanecidos e ocultados pela finalização desse processo e o conseqüente oferecimento (à compra e venda) de um produto, o livro. Quis mostrar o quanto existe de vida real, sofrimento e danação por trás da feitura dos “objetos transcendentes”, declarou Telma ao blog mundolivro.

Telma Scherer acredita que “a boa poesia pode ser escrita enquanto inscrita no corpo”. Uma voz poética a ser decoberta, e que pode começar com uma visita pelo seu blog. Ali pode-se ter um primeiro contato com os poemas de Telma, como o que reproduzo abaixo.

“Não sou católica.
Minha alma vem de outros ancestrais.
E são tais, os meus companheiros,
que não nos dizemos nada.
Nem ais, nem mágoas,
nem vaidades e nem anseios.
Entendemo-nos.
Bater portas, fazer gritos,
verter brita no fundo dos olhos,
isso não é comigo.
Não sou católica,
mas minha alma é cheia de Palavras.
São elas que brilham
depois da escavação.
Estar certo
não adianta nada.
Escavem o certo e o errado,
mesquinhos aos olhos de Deus.
Deus esquece das mágoas vãs.
Porque Deus é maior que o mundo,
e menor.
Ele sabe de toda a história.
Não precisa contar piadas.
Deus não precisa
levantar a voz.
(Telma Scherer, extraído de http://telmascherer.blogspot.com)

Este pequeno poema, composto de 25 versos de aparente simplicidade, esconde uma significação nada simples. Telma parece dialogar com a poesia de Mario Quintana, principalmente pelo lirismo contido que tende ao metafísico. Ao mesmo tempo, sua escrita desconfia da suposta complexidade da vida. Embora tenha “a alma cheia de palavras”, elas não precisam ser verbalizadas: Nem ais, nem mágoas, nem vaidades e nem anseios. Entendemo-nos. Bater portas, fazer gritos, verter brita no fundo dos olhos, isso não é comigo”.

Escrevo sobre Telma Scherer sem conhecer o conjunto de sua produção e sei que isso torna arriscada a leitura. Se a poesia é risco, nem por isso o risco da leitura é menor. Afinal, ler é ser lido por aquilo que se lê, e os versos de Telma Scherer acima citados são palavras que “brilham depois da escavação”.
M.S.V.

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