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Murakami, a corrida e a escrita

O escritor Haruki Murakami (Foto: Divulgação)
Sabemos que todo escritor, seja ele um ficcionista, biógrafo ou ensaísta, para ser bem sucedido no que faz, precisa de talento. Mas isso não é tudo e podemos compensar a falta ou o pouco talento com duas outras qualidades: concentração e perseverança. “Felizmente essas duas disciplinas – concentração e perseverança – são diferentes do talento, uma vez que podem ser adquiridas e aperfeiçoadas por meio de treinamento”, escreve Haruki Murakami, em Do que eu falo quando eu falo de corrida.
Neste relato autobiográfico, o escritor japonês, que já tem vários de seus romances publicados no Brasil (Editora Alfaguara), vale-se de sua experiência de corredor de longas distâncias (participou da maratona de Nova York, entre outras) para refletir sobre o ato de escrever, no seu caso, romances.
Leio as observações de Murakami pensando em meus próprios desafios de escrita, no momento em que desenvolvo uma pesquisa de longa duração e que ainda está apenas nos esboços iniciais. Concentração e perseverança são atributos difíceis de adquirir, mas, segundo ele, fundamentais para um trabalho de longa duração.
“Sem isso (concentração) não se pode realizar nada de valor, ao passo que se você for capaz de se concentrar eficientemente, conseguirá compensar um talento errático ou até a falta de talento. Eu geralmente paro para escrever de três a quatro horas todas as manhãs. Sento em minha mesa e me concentro totalmente no que estou escrevendo. Não olho para mais nada, não penso em mais nada”, escreve Murakami.   
Além da concentração, o segundo atributo para quem escreve ou pesquisa é a capacidade de perseverar. Como isso se traduz? Acumulando energia para se concentrar no seu projeto dia após dia, sem falta, durante um semestre, um ano, dois anos. Como combinar essas qualidades com o ritmo frenético da vida academia, que transforma o dia a dia numa sucessão de tarefas e compromissos fragmentados? Nas férias? No semestre sabático, para os poucos que o possuem?
Deixo para o final a síntese do método de Murakami: “você aprenderá naturalmente a ter tanto concentração quanto perseverança quando sentar todo dia diante de sua escrivaninha e treinar a mente a se concentrar em uma coisa só”. Esse é o meu desafio e agora sei que não é uma utopia.

M.S.V. 

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