O Instituto de Química da Wahringerstrasse, em Viena, onde Carpeaux e Canetti estudaram na década de 1920 |
É nesse endereço que está localizado o Instituto de Química da Universidade de Viena, onde o jovem Otto Karpfen estudou entre os anos 1920 e 1925.
Em suas memórias, o escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) relembra os tempos em que estudou no mesmo Instituto da Wahringerstrasse, e descreve-o como “o velho instituto enfumaçado, situado no começo da Wahringerstrasse” (Uma luz em meu ouvido, Companhia das Letras, trad. Kurt Jahn). Não há dúvida, é este o prédio, pensei, parado na calçada da Wahringer, numa fria tarde de inverno.
Canetti viveu muitos anos em Viena e foi nessa cidade que conheceu Veza, com quem viveria por toda a vida. Veza era uma mulher liberal, extremamente culta e que se recusava a seguir os padrões socialmente estabelecidos para as mulheres. Nos anos 1920, frequentava os círculos literários de Viena e as famosas conferências públicas de Karl Kraus, que por essa época era um figura central na cidade, e que se tornaria um dos jornalistas mais importantes da Europa no século 20.
Carpeaux e Canetti estudaram Química no mesmo instituto e por pouco não foram colegas. Cinco anos mais jovem do que Carpeaux, Canetti formou-se em 1929, quatro anos depois do jornalista austríaco-brasileiro. Creio que não iria errar por muito se dissesse que ambos se “conheciam” dos corredores do velho instituto, onde hoje funciona o curso de Medicina Genética da Universidade de Viena. Talvez até tenham conversado.
Não conheço nenhum artigo de Carpeaux sobre Canetti, mas a trajetória de ambos tem muitas coincidências. Além da origem judaica, da juventude vivida em Viena e da mesma profissão de Químico – que ambos jamais iriam exercer – os dois deixaram a cidade em 1938, quando Hitler entrou triunfante na ex-capital do império austro-húngaro.
Canetti refugiou-se na Inglaterra e, depois da guerra, passou a viver na Suíça. Carpeaux, que abandonara formalmente o judaísmo em 1933, teve um destino bem diferente. Fugiu para a Holanda e, um ano depois, chegou ao Brasil.
Canetti tornou-se um dos principais escritores do século 20, premiado com o Nobel de Literatura em 1981. Carpeaux tomou um caminho sem volta: no Rio de Janeiro, deixou para trás não apenas seus pais, seus livros e sua amada pátria, mas também sua língua materna, pois passou a escrever em português. Poucas coisas podem ser tão avassaladoras para o ser quanto isso. Há os exemplos de Conrad e Nabokov com o inglês, mas eles fizeram uma opção. O caso de Carpeaux é diferente, pois ele não tinha escolha.
Carpeaux abandonou também uma promissora carreira de ensaísta e jornalista, que se abria para ele em Viena nos anos 1930. No Brasil, tornou-se um crítico extraordinário, que produziu artigos incansavelmente durante 35 anos para diversas publicações. Mas escrevia em português e estava do outro lado do Atlántico. Aqui em Viena ele praticamente não existe. Ou melhor, só existe até 1938. O idioma pode ser tanto uma abertura quanto um confinamento.
Nós, no Brasil, certamente ganhamos. Sua obra brasileira está aí para provar. Mas eu não tenho certeza quanto a ele, principalmente quando penso no talento e na dimensão que seus artigos e ensaios assumiam na década de 1930. E agora que descubro outros mais aqui em Viena, fico a pensar que, se tivesse ele tido condições de permanecer na Europa, sua obra teria uma dimensão mais profunda do que a que teve no Brasil, que traz as marcas da mediação cultural, do comentário, do trabalho de segunda ordem. Meu único conforto é pensar que se nós, no Brasil, ganhamos com sua inserção em nossa cultura literária, ele, ao cruzar o Atlântico em fuga desesperada, escapou da morte.
M.S.V.
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