Pular para o conteúdo principal

Poesia da gramática e do sabor

Viena. Meu jornal de leitura diária aqui é o Wiener Zeitung (“Vina tzaitung”, como me ensinou insistentemente a senhora da banca da esquina), um standard diferente dos nossos, pois tem mais largura e menos comprimento. A edição deste fim de semana tem 48 páginas divididas em quatro cadernos e esta estrutura se repete nos demais dias. O jornal é sóbrio e tem um bom equilíbrio entre texto e imagem. Desde o início me chamou atenção na banca, por destoar de tablóides populares como Kronen Zeitung e Österreich, ou o Heute, distribuído gratuitamente por toda a cidade.

Os vienenses com quem tenho contato diário vêem meu esforço para aprender a pronúncia correta de palavras e expressões e me ensinam, com muito boa vontade. Mas observo que nem todos tem disposição para dominar com fluência o idioma da cidade em que moram.
Viena é hoje uma cidade com muitos imigrantes, vindos de continentes como Ásia e África. No metrô, vejo vários desses imigrantes falando alto ao celular, no seu idioma materno, indiferentes a quem está ao lado e sem se incomodar com o fato de tornarem pública sua condição de estrangeiros. Estão aqui para “ganhar a vida”, mas recusam a assimilação, a aculturação. Observo isso com imigrantes turcos, indianos e africanos.
Nas ruas e shoppings, há muitos restaurantes asiáticos. Turcos oferecem seus kebaps, pratos feitos com carne desfiada, arroz, salada, páprica e muitas fatias de pão. Os chineses e japoneses montam seus tradicionais bufês do tipo “coma tudo o que puder”. Estão sempre lotados; são baratos. Nesses restaurantes populares, comida asiática é sinônimo de comida barata. Na primeira semana fui vítima dessa culinária asiática feita para estrangeiros com muita fome.
Logo, porém, percebi que aquilo não era Viena. Foi então que comecei a frequentar os restaurantes administrados por vienenses. Outro cardápio, outro ambiente, outro serviço, outra clientela. E o mais surpreendente: os preços não são tão diferentes daqueles.
Como entender então essa separação? Cinco semanas é pouco para conhecer a resposta, mas arrisco um palpite: pode estar na predisposição para conhecer a cultura local, para se deixar influenciar pelo ambiente de Viena. E isso começa pela poesia da gramática e continua na gramática do sabor.
M.S.V.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"O cacto", de Bandeira

Houve tempo em que a leitura de poemas era para mim um hábito quase diário. Tenho a impressão de que a poesia é mais necessária quando somos jovens e estamos ainda em busca de um caminho. Entre os poetas brasileiros, Manuel Bandeira talvez tenha sido o autor ao qual mais retornei para releituras. E não havia mediação crítica nessas leituras. Só muito mais tarde, já aluno de Teoria Literária na USP, é que acrescentei à minha experiência de leitura as análises do crítico literário e professor Davi Arrigucci Jr. Foi num de seus cursos que conheci O cacto , um pequeno poema que o professor Davi analisava em aula. De seu método, guardei para sempre a atitude que todo leitor deve ter diante da poesia, antes mesmo da interpretação: trata-se da escavação filológica, procedimento aberto por Erich Auerbach. Publicado em 1925, O cacto impressiona pela beleza áspera que exala de seus versos. “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugoli

Em busca da Terra de Ninguém

No romance O cavaleiro da terra de ninguém o escritor Sinval Medina reconstrói a trajetória do português Cristóvão Pereira de Abreu, sertanista e comerciante que abriu o primeiro caminho terrestre ligando o Uruguai a São Paulo. No distante século 18, havia uma extensa e despovoada faixa do território brasileiro que começava na Colônia do Sacramento, hoje Uruguai, e chegava até os campos da Vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, ou apenas Laguna, como chamamos hoje. Nesta vasta e solitária paisagem, viviam “sem lei nem rei” minuanos, tapes, jesuítas, castelhanos, buenairenses e outros tipos erráticos, todos disputando um pedaço desta vasta, rica e desabitada parte do Brasil, chamada muito apropriadamente de Terra de Ninguém. Este foi o cenário escolhido pelo escritor Sinval Medina para contar as aventuras do cavaleiro português Cristóvão Pereira de Abreu, que ficou conhecido como Rei dos Tropeiros, e que encarou o desafio de abrir um caminho por terra ligando as barrancas orientais

A história de uma família numa coleção de netsuquês

O Palácio Ephrussi, na Ringstrasse, em Viena Transformar em livro a história de uma família é uma idéia cujos resultados costumam chatear o leitor, que em geral se vê diante de páginas que desfilam elogios e que só constróem imagens oficiais dos biografados. Não é o que ocorre com A lebre com olhos de âmbar , de Edmund de Waal (Ed. Intrínseca), que, conta a história de uma coleção de miniaturas feitas de marfim e madeira que pertenceu aos Ephrussis, uma família originária de Odessa, na Rússia, que se estabeleceu na França e na Áustria no final do século 19. Os Ephrussis eram de origem judaica e fizeram fortuna no setor financeiro, ao mesmo tempo em que revelaram-se grandes colecionadores de obras de arte. Ao herdar a coleção de miniaturas, o autor, Edmund de Waal (desconhecido por aqui, mas parece que e reconhecido lá fora como ceramista) decide mergulhar na história para resgatar a trajetória de seus avós. Parte para Paris e Viena em busca de documentos de seus antepassad