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A língua em sua dimensão mais banal

Viena, 02/11/2011, 13h00. Já dizia Walter Benjamin que a linguagem não poderia ser definida por seu significado instrumental. Ao ressaltar o aspecto mágico e sua imediaticidade, o filósofo alemão buscava excluir esse viés utilitário da língua, para ele identificado com uma concepção burguesa da linguagem.

Ora, é exatamente essa dimensão instrumental, condenada por Benjamin, que estou vivenciando nesses dias aqui em Viena, em que me sinto completamente cercado pelo idioma alemão. No hotel, nas ruas, no shopping, nos restaurantes e nos cafés, e até mesmo no quarto, quando ligo o aparelho de TV, o idioma está por todos os lados, penetrando pelos ouvidos e pelos poros, como um vírus.

Confesso que, nos primeiros dias, senti-me acossado. Aos poucos, porém, passei a ficar à vontade com a situação. Afinal, essa viagem de pesquisa tem também esse objetivo: sanar as dificuldades de quem aprendeu o idioma depois dos 30 anos. Assim, minha única alternativa era procurar me comunicar em alemão, superando as limitações, insistindo muito e, principalmente, negando-me a usar o espanhol ou o inglês, idiomas muito utilizados em Viena. Tenho levado tão a sério esse propósito que, outro dia, no café da manhã, escutei a frase: “hoje tem salada de frutas...”. Refreei de imediato a saudade da língua materna e afastei-me rapidamente do casal que se servia no bufê, tudo para não iniciar uma conversa em português.

Não sei por quanto tempo conseguirei pôr em prática essa estratégia. Mas sei que a fase mais difícil com o idioma já passou. Afinal, desembarcar no aeroporto de uma cidade desconhecida, num país desconhecido, pedir um taxi, informar o local de destino, apresentar-me na recepção do hotel, pagar a hospedagem, contar o dinheiro e conferir o troco... Tudo isso resistindo ao convite constante para falar em espanhol ou inglês. Confesso que não tem sido fácil. Mas a cada uso “mal-bem” sucedido que faço do idioma, mais forças renovo nessa que parece ser uma eterna tarefa de Sísifo.

Essa atitude diária pode ser interpretada como um radicalismo de minha parte, ou até masoquismo. Na verdade, é apenas a reação de um brasileiro que estuda há muitos anos o alemão e que sempre se frustrou com os exercícios artificiais dos cursos de idioma. Mas que agora tem diante de si a oportunidade de conhecer a língua em sua dimensão mais banal, que é a de se fazer entender aos outros para garantir a sobrevivência diária.
M.S.V.

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