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De estrangeiros e de moradias: algumas impressões

Mariahilfer Strasse: padrão arquitetônico se repete pela cidade
O que é ser estrangeiro? É ser reconhecido pelo sotaque ou pela pronúncia. É ser classificado com um simples olhar pelo tipo físico ou pela cor da pele. Ou então pelo modo como se ganha a vida, ou seja, pelo trabalho, e pelo círculo de amizades, pelos hábitos incorporados. Diante dessa realidade, o conceito de cidadania não consegue dar conta. O sujeito pode ter direitos iguais, mas continua sendo um estrangeiro aos olhos dos nativos de um determinado local.
Pensei nisso após escutar a história de Draggo, um sérvio que mora há 16 anos em Viena. Fala alemão com um levíssimo sotaque eslavo. Deixou Belgrado com os pais e irmãos em 1995 para tentar a vida em Viena. Não voltou mais. Como ele, a quase totalidade dos empregados do hotel em que estou é de estrangeiros que chegam aqui e vão aprendendo o idioma no dia a dia, mas não têm nem terão condições de conseguir um emprego melhor. Percebo que a inclusão num determinado meio começa pelo uso da língua. Esta competência gera distinção e pertencimento. Se isso não ocorre, nos sentimos excluídos. Como em todas as grandes cidades européias, em Viena os estrangeiros executam funções destinadas aos que tem baixa escolaridade. “Os austríacos trabalham nos escritórios, na polícia, nos serviços públicos”, explica Draggo.
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Caminhando hoje de manhã pelas redondezas do hotel em que estou hospedado, fiquei observando que há muitos prédios velhos, necessitando de reforma urgente. Tenho visto também que todos os edifícios da cidade seguem o mesmo padrão arquitetônico. Vistos da calçada, são retangulares, com janelas enormes e possuem no máximo quatro andares. Pode-se contar nos dedos os edifícios construídos fora desse modelo. Vi alguns em áreas mais afastadas, acima do Danúbio, numa região de pouca densidade populacional.
Edifícios são antigos e amplos 
Creio que os moradores se identificam tanto com essa arquitetura -- os prédios devem ter uns 80 anos, no mínimo --, que recusam seguir outro padrão. Deve haver legislação impedindo tais mudanças, mas é inegável que a permanência no tempo desse modelo arquitetônico é reflexo de um apego à tradição, que remonta ao século 19, quando a cidade ganhou dimensões propriamente modernas, com a Viena da Ringstrasse. Além do mais, são edifícios com espaços internos amplos, bem diferentes dos nossos minúsculos apartamentos no Brasil. Tudo isso contribui para um sentimento de identificação com a tradição e de recusa à mudança.
M.S.V.

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